terça-feira, 8 de setembro de 2009

A Marcha da Derrota


Um carimbo num rótulo com letras desconhecidas. A garrafa é acariciada por mãos magras e lentamente selada numa espécie de ritual pagão e profano. Guardada numa estante. O vidro é fechado pelas mesmas mãos. Tranca-se o cadeado. Sete. Pausa. Um tipo magro admira a garrafa ainda por alguns instantes. Pausa. Se vira bruscamente e anda em câmera lenta até sentar-se em uma poltrona de couro liso, acender o cachimbo e soltar anéis de fumaça. Pausa. Olha através deles pensando. Pausa. Num lampejo seus olhos se estatalam como se tivesse acabado de descobrir o sentido da vida sem poder dizer isso com palavras. Neste instante, o céu se fecha, raios e trovões pulam na janela da saleta com paredes enegrecidas pelo fumo onde lentamente assistia seu corpo delfinhar-se. Pausa. Ele olha o relógio no pulso esquerdo e coça o queixo com a mão direita. Pausa. Começa a fazer a mala abrindo o guarda-roupas com violência infantil. Eram camisas, gravatas, cuecas, cachimbos, saquinhos de fumo amassando tudo. Pausa. Vai até estante em câmera lenta e adimira a garrafa outra vez. Pausa. Abre lentamente os sete cadeados com sete chaves diferentes, porém bem parecidas que só seriam diferenciadas por um chaveiro experiente ou por um mendigo bêbado. Pausa. Abre lentamente o vidro com a cautela de um artesão modelando os seios da virgem maria de barro. Seus olhos fotografam sete vezes por segundo. Pausa. Pega a garrafa, embrulha numa flanela e a coloca por cima de tudo com uma almofadinha em baixo e outra em cima antes de fechar a mala. Grande pausa.
Ele pára no portão. Pausa. Corre afora à passos largos olhando alternadamente para os dois lados e para trás escondendo a mala rente à barriga. Um homenzinho vem à galope na contramão. Meu herói sem exitar apanha um galho na beira da estrada de terra esburacada e o derruba do cavalo que parte em disparada. Pausa. Deposita a maleta com cuidado no chão antes de beijá-la ternamente. Pausa. Improvisa um laço com cipó de chuchu e mede a distância com os olhos. O direito mais fechado que o esquerdo cuja sobrancelha os acompanhavam. Pausa. Laçada certeira! O cavalo arrasta meu herói por alguns metros. Mas meu herói se levanta aos solavancos e esquia pelos cascalhos. Alguns metros adiante o cavalo se rende. Ele se lembra da maleta. Arrasta o cavalo pela pista de patinação com o cipó de chuchu até a maleta. A maleta estava intacta. Ele coloca o cavalo de pé e tira-lhe a poeira à tapas. Faz o mesmo consigo. Cospe nas mãos e as esfrega como se as estivesse lavando. Pega a maleta do chão e solta-lhe um bafo que esfrega logo após com os punhos da camisa suja. Pausa. Vê seu rosto refletido. Monta o cavalo e espora o na verilha. O cavalo relincha, empina e parte em disparada. Meu herói sabe montar. Com a mala solta contra o peito cavalga segurando o chapéu surrado pelo sol e pelo tempo para que o vento não o derrube. A estrada foi afinando-se até virar uma trilha. O sol vai se pondo e o cavalo já começa a mostrar sinais de cansaço. Meu herói começa a ficar impaciente e cotuca a verilha do cavalo com os sapatos de couro cada vez com mais força. O cavalo começa a cambalear. Anda cada vez mais devagar e escorrem lágrimas até do seu ânus. Pausa. Ele começa a cagar e a andar e cai. Pausa. Meu heói irritado chuta o cavalo no chão e olha o horizonte avermelharanjado. Pausa. Esconde a maleta na barriga e marcha a pé. Enxuga o suor e os pés vão trocando os passos automaticamente. Cincronizadamente e inconscientemente dá oito passos e enxuga o suor do rosto com o punho direito. Ofega. A pedra no caminho derruba meu herói. Enquanto cai, solta a mala. Pausa. A mala se abre no ar. São camisas amassadas, gravatas, o fumo, o cachimbo, a almofada e a garrafa voando pelos ares. Os olhos do meu herói acompanha tudo enquanto bate o queixo no chão. Ela se desenrola da flanela e vai virando cambalhotas no ar. Ele pula feito um bagre em lagoa seca e dá uma petecada na garrafa. Com a outra mão ele tenta agarrá-la, mas a peteca sempre alternando as mãos. A vida fica em camera lenta. Na última petecada a garrafa se afasta e os olhos do nosso herói fitam a parábola que ela faz até o chão. Pausa. Se espatifa. O líquido é sugado pela terra seca da estrada de terra como se evaporasse. Pausa. Nosso herói chora com um olho só e come os terrões onde se alojara o líquido misterioso. Pausa. Sentado ele olha para o horizonte já sem sol, mas com uma lua triunfante. Nem parecia ter sido derrotado na marcha.

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