terça-feira, 10 de novembro de 2009

A Mão de Felício

1


Felício sabia que crescer não era coisa fácil; só não imaginava que fosse tão difícil. As espinhas filhas da puta que faziam do seu rosto um morango gigante, os pêlos da púbis que não cresciam, o físico de maratonista aposentado, a descoordenação motora avançada, a dislexia, o cabelo ressecado, a timidez, o medo, a solidão e os dezesseis anos que somava. Tudo isso aos dezesseis! E era hoje!
Felício odiava festas de aniversário, especialmente se o aniversariante fosse ele. As tias gordas que sempre babavam no seu rosto e depois faziam cara de nojo das espinhas. Cada uma com uma receitinha mais absurda que a outra:
Coloque umas folhinhas de bálsamo. – dizia uma.
Sebo de porco também é bom.
Que nada, misture limão com farinha de mandioca e leite de magnésia... e assim
continuaria se tio Astolfo não fizesse um de seus preciosos comentários para que elas cessassem:
– Pare com as punhetas! Para acabar com essas putas, só mesmo uma boa e velha espinha! – ele ria alto, sozinho e depois o silêncio reinava. Reinava até a hora de cantar os parabéns...
Todos ao redor da mesa. Verão escaldante e os únicos magros da festa era Felício e mais uma ou duas crianças. O suor descia e o odor subia, o creme do bolo derretia e a vela não acendia... Felício, no meio da mesa encurralado com as mãos suadas e olhos inquietos. Pela sua expressão era possível que não agüentasse mais cinco minutos encarnado. O coral da família Silva cantava cada um num tom diferente... alguns até em tempo diferente e Felício só queria que aquilo terminasse logo. Mas o que terminou logo foi a caixa de fósforos. Que fiasco! Tio Astolfo aproveitando a deixa, comentou a cena:
. – Esqueçam essa vela, Felício é tão estúpido que não saberia o que pedir. E se soubesse, com certeza seria uma coisa bem estúpida! – mais uma vez ria alto e sozinho. Os que ficaram em silêncio, ficaram em respeito à mãe de Felício e não porque não acharam graça ao comentário.
Felício queria morrer. Pela primeira vez na sua curta vidinha limitada sabia o que queria. Queria morrer como Jesus Cristo. Queria morrer e ao mesmo tempo ser um cristão o apedrejando. Há quanto tempo não ficava alegre? Há quanto tempo nada de bom acontecia? Por que os brigadeiros estão sem granulados? E absorto nestes pensamentos, nem reparou que Tibério, seu primo mais novo, furou o balão de doces e que a farinha e o azeite já estava se espalhando pelo seu corpo. Quando deu por si, todos riam, gesticulavam, apontavam e Tio Astolfo comentava:
– Vejam ele ficou melhor assim! A farinha escondeu as espinhas... – desta vez, todos riram. Felício ainda tentou voltar ao transe, mas o que fez foi correr pela sala rumo ao quarto. Teria conseguido se Adélia não tivesse colocado o pé no seu caminho. Tinha um pé no meio do caminho! No meio do caminho tinha um pé! Felício desmaiou com a queda. Todos correram e agora tentavam acordá-lo.


2


Adélia. Ruiva. Magra. Maldosamente bela. Prima de Felício. Motivo de sua primeira desilusão amorosa. Na queda e no coma Felício teve uma revisão dessa desilusão:

“Felício, horas e horas decorando o texto. Horas e horas penteando o cabelo. Horas e horas imaginando possibilidades. Horas e horas se perfumando. Horas e horas passando o texto. Horas e horas para se decidir. Felício decidido.”

Adélia, eu preciso te falar...
Fala...

“Felício esquecendo o texto...”

“Felício improvisando...”

– Eu gosto de você e queria te beijar...
Argh!... eu prefiro beijar o pau de um libertino cheio de porra, catarro e feridas!...

“Felício envergonhado... Felício horas e horas pensando naquilo. Horas e horas angustiado. Horas e horas tentando esquecer. Horas e horas chorando por dentro. Horas e horas tentando descobrir o que seria um libertino. Horas e horas pensando em suicídio. Felício decidido a se matar.”

Escreveu um bilhete de duas páginas frente e verso, relatando com detalhes a razão de seu futuro ato. Queria que Adélia se sentisse culpada quando lesse o bilhete.

“Felício horas e horas lendo o próprio bilhete. Horas e horas escolhendo a forma. Horas e horas a imaginar o remorso de Adélia... sentiu um último prazer com isso e acordou horas e horas depois no hospital com curativo nos pulsos e rodeado de parentes.”

A cena lembrava um pouco uma festa de aniversário, só que desta vez ele estava no lugar do bolo.
A tentativa de suicídio lhe rendeu quatro semanas de castigo. Quanto à Adélia, ao ler o bilhete, ao invés de remorso achou graça, sentiu vontade de mostrar às amigas e o fez. Felício ficou famoso na escola. Era o assunto. Era impossível não rir ao vê-lo entrar pelos portões, com a postura tímida e os olhos escondidos entre as espinhas...

3

Felício de volta do coma. Ninguém ainda tinha arranjado fósforos, então foram abrir os presentes. Quando Felício entrou... viu que Tibério já os tinha aberto. E o que era pior! Os presentes eram em sua maioria camisetas regatas e ele as odiava pelo seu físico. Um dos presentes era um antigo jornal da escola que ele não entendeu a razão até ver que seu bilhete estava publicado... Adélia...
Todos estavam com as cabeças ocupadas em arranjar os benditos fósforos, então Felício teve o seu primeiro momento de paz no dia, que aproveitou para pensar. Tudo o que queria agora era não ter família, não estar fazendo aniversário e não estar sendo observado. Às vezes, somente às vezes, tinha a impressão de que algum dia poderia sentir saudade desse tempo. Quando isso acontecia, suspeitava de que a loucura estava bem próxima. Imaginava sua própria casa, seus próprios filhos, seus próprios cães, seu próprio carro. Só não conseguia imaginar sua própria mulher. Parecia uma coisa tão difícil... distante... pois como dizia Tio Astolfo:
. – É melhor se contentar com as mãos porque você não tem qualidades atrativas para as mulheres... – pensando nisso, quis mais uma vez morrer e sentiu medo. Medo da morte? Não. Medo do desconhecido? Não. Medo do céu cristão? Não. Medo filho da puta de morrer virgem! Enquanto pensava, Tibério amarrou seus cadarços um no outro.
O tempo não passava para Felício e a família Silva já estava inquieta por causa dos fósforos... dona Rita, mãe de Felício, disse:
Calma filho. Nenhum Silva passou sequer um aniversário sem fazer pedido e
apagar a vela acesa. – Tio Astolfo emendou:
Bem, um Silva não. Mas quem disse que Felício é um Silva? – neste momento,
Felício confirmou a suspeita de que era adotado e sentiu alívio. Sua expressão mudou. Sorriu pela primeira vez na festa, se levantou, caiu, foi até a cozinha e voltou após quinze minutos com os preciosos fósforos.
Agora estava tudo bem. Dona Rita até comentou que nunca vira Felício tão feliz...


4


Outra vez, todos ao redor da mesa, verão escaldante, os obesos, o suor, o odor, o creme e Felício sorrindo no centro da mesa...
Fez o pedido? – perguntou Dona Rita.
Felício sorriu e assentiu com um gesto de cabeça... dona Rita acendeu um palito delicadamente... a primeira faísca saiu e foi a última festa de aniversário dos Silva e consequentemente o fim dos comentários precisos de Tio Astolfo.
A felicidade de Felício se explica facilmente. Abriu a mangueira do fogão, enquanto esperava o gás se espalhar pela casa, perdeu a virgindade com a mão direita.

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