segunda-feira, 29 de março de 2010

João de Deus e a Procissão

Devaneio

Montanhas. Vento. Poluição. Um homenzinho quase anão, debruçado na janela da sala, pensava na mulher e nos filhos que morreram atravessando a vicinal que ligava a sua casa à cidade. Couberam todos no mesmo caixão. Sobrou pouca coisa deles. A maior parte foi parar no ferro velho com os restos do caminhão. João suspira e olha pra vicinal. Uma lágrima escorre até o canto esquerdo de seus lábios cheios de rugas fabricadas pelo sol e pela idade. Suspira outra vez. Sua vida perdera totalmente o sentido. Com a perda da sua esposa, tinha que lavar as próprias cuecas, fazer seu próprio café e enrolar seus próprios cigarros. Com a perda dos filhos, não tinha mais em quem bater para aliviar o nervosisismo do corte de cana. Precisava urgentemente de um cachorro, pois sua cabeça andava cheia de galos de bater nas paredes enegrecidas pelo fumo sem reboco do interior do quarto escuro. Andou até a cozinha cabisbaixo e abriu a geladeira. Só tinha água, uns poucos dentes de alho e uma lata de manteiga pela metade. Fechou. Voltou até a janela da sala. Suspirou mais uma vez.

A Visão

Há alguns dias já estava sem comer e teve uma visão. Ao invés de caminhões e carros de todos os modelos, cobria a vicinal uma porção de gente de todas as idades. Cheias de bolsas e sacolas com caras de obstinadas e cegas. Nenhuma olhava para o lado, o que o fez pensar que elas não o viam. Gritou, acenou, tentou de tudo e ninguém parecia vê-lo. Correu até eles e perguntou de perto o que estavam fazendo e pra onde estavam indo. Eles disseram se tratar de uma procissão.


A Procissão

Todo dia seis de outubro de cada ano, eles organizavam uma procissão para visitar um padre milagreiro da cidade vizinha. Um dos seus maiores milagres era ser proprietário de doze fazendas sem nunca ter trabalhado na vida e ter vindo de uma família pobre. João não tinha nada melhor pra fazer e seguia o ditado que mente desocupada é oficina do diabo, decidiu seguir a procissão. Estava com a roupa do corpo e chinelo de dedos. Todo mundo seguia aquele caminho com a sua promessa feita na cabeça, ele seguiu por não ter nada melhor pra fazer.


As Promessas

Tinha todo tipo de promessa; Das bem fáceis que nem precisavam do padre milagreiro. Ter uma boa colheita, coragem para trabalhar, que a sua televisão não saísse do ar toda vez que chovesse, que seus filhos crescessem fortes e sadios para sustentarem a casa quando estivessem velhinhos. E também das impossíveis que nem o padre dava jeito; Que suas mulheres fossem sempre fiéis, que ganhassem na loteria sem nunca jogar, que seus parentes mortos voltassem à vida, que ficassem ricos cortando cana, que nunca pegassem gonorréia transando sem camisinha, que fossem deus e o diabo a quatro. Ou seja, o padre não servia de nada a não ser vender relíquias por valores estrondosos e sustentar suas doze fazendas e quem sabe conseguir mais algumas no futuro.

A Promessa Ainda Não Feita Mas Já Sendo Paga

Passos incontáveis tentando encontrar alguém na multidão que não estivesse rezando fervorosamente. Não encontrou ninguém e não era a primeira vez que se sentia só na multidão. Mas outrora tinha o conforto de sua família que agora não existia mais. Diante da vigésima tentativa frustada de conversar para amenizar a caminhada, se calou e continuou passo a passo. Enxugava o suor do rosto e fingia rezar também. Ofegava, principalmente na subida. Quando as sexagenárias começaram a deixá-lo pra trás e seus pés estavam cheios de bolhas doloridas de sague pisado, ele pensou em desistir. Teria desistido se não fosse cinco da manhã e já tivesse andado doze quilômetros e alguns metros. Secou o suor com as mãos e olhou para o horizonte obstinado. Sem promessa feita, seguiu em frente. Seu chinelo arrebentou e seguiu a pé. João começa a chorar e a soluçar. Todos lhe negavam água. Alguns o olhavam entre as suas orações e pensavam que sua promessa era muito impossível, já que seguia descalço e não levava nenhum mantimento, razão pela qual não lhe ajudavam em nada para que João alcançasse a graça almejada. Mesmo que o que almejava era estar em casa com os pés numa bacia com água gelada.

O Desfecho da Procissão

Onze e meia da manhã e João estava no piloto automático, já sem coro na sola dos pés. Alguém grita:
- Cidade à vista!

Todo mundo acelera o passo, João mantém a mesma velocidade e é pisoteado pela multidão. As pessoas entram ensandecidas na cidade feito rinocerontes assustados para pegarem lugar na Igreja e poderem ver o padre de perto. Muita gente morre na porta da igreja, esmagados entre os pés e o chão sagrado. Depois que os sobreviventes se aconchegam em suas cadeiras, o padre entra cambaleando e faz o sinal da cruz bem rápido para demonstrar habilidades com as coisas divinas bebendo todo o cálice de vinho. Se retira e manda uma carreira de cocaína. Os oito coroinhas, seus escravos sexuais, entram com malotes recolhendo as doações deixando um prego legítimo da cruz de Jesus para cada pessoa presente. Se todos aqueles pregos tivessem entrado no corpo de cristo, seria impossível acreditar no milagre da ressurreição. Depois, cada um dizia em pensamento as suas promessas e estavam prontos para caminhar mais dezoito quilômetros e esperarem ansiosos os seus milagres.

A Promessa de João

João chega com meia hora de atraso. Desacorsoado e semi-morto de sede e fome, sem a sola dos pés e com fraturas espalhadas pelo corpo, algumas expostas, vai até a igreja e se depara com uma placa com a seguinte inscrição:

"Acabaram os pregos. Aceitamos promessas só no ano que vem"

Mesmo assim, João se ajoelha e faz sua promessa, mas não em pensamento, ele dá um berro:

- Prometo nunca mais seguir uma procissão!

Sua promessa é a única que se concretiza. João de Deus cai morto na porta da igreja.

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